Page 125 - Da Terra
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PAI NOSSO ISSO NÃO É PUXADO PARA AQUI
Quando era criança entre nha-me apanhando Bem aparecida seja como o sol de Inverno. Quer, então, o meu testemunho? Digo-lhe que comecei cedo a bailar nos braços dos
sombras. Imaginava-as na concha das mãos como pares, descalço e quase nu. Ainda tenho esse jeito. Quer ver? Quando fui para sacar o revólver, falhou-me o coldre. Há sempre
insectos capturados em pleno voo, antes de abrir os qualquer coisa a interromper-me o disparo. Não sei se azar, se des no, mas há sempre qualquer coisa que não controlo, que não
dedos soltando-as como a borboletas. Preocupada está nas minhas forças dominar, qualquer coisa que resolve por mim aquilo que, à par da, apenas eu poderia resolver. Sucede
comigo, julgando-me à mercê de uma imaginação quando vou à caça, quando mergulho nas águas gélidas do pensamento, quando, no terreiro domés co dos meus dias, vou
demasiado fér l, minha avó fez-me decorar orações. deixando peças de roupa pelo caminho. Que poderei eu fazer contra esta sina? Não possuo a perspicácia dos pistoleiros, nem
Então, em vez de apanhar sombras, eu dizia: a rapidez dos samurais, não fui dotado de olhares assassinos, in mido os meus interlocutores apenas no despeito das horas vagas.
Faltam-me os treinos quando bato as cartas na mesa. Baralho o monte sem hesitação, mas só dou biscas aos adversários. Trunfos
O PÃO NOSSO DE CADA DIA NOS DÊ HOJE… na manga não trago, pois visto sempre mangas curtas. Reduzo-me à insignificância dos factos: Deus não quer nada comigo, e nem
por isso posso queixar-me. Também nunca quis nada com ele. Mas às vezes dá-me uma certa nostalgia dos confessionários, da
catequese, desses altares onde o Senhor acolhe orações paté cas, às vezes dá-me uma certa nostalgia dos terços, das ba nas, dos
Ao ouvir-me dizer tais coisas, meu pai repreendeu-me.
crucifixos. Fico deitado nas ilhas a mirar transeuntes. Fixo-me nos trejeitos das moças, olho os acompanhantes de bico calado.
O pão ganha-se com trabalho, ninguém o dá. E eu
Adoro mãos dadas, gente que passeia abraçada, curvas tão român cas quão acé cas. E juro que não lhes invejo os dias. Sei lá dos
fiquei sem saber o que pensar, e em não sabendo o que
seus dias. Não posso saber, estou aqui fechado. Sei apenas que fico para ali a pensar que devo ser um enteado do Senhor, uma vista
pensar fiquei sem saber o que fazer. Ainda hoje
curta, um queixume com mais fome do que barriga. Eu foi um milagre, não ve avó nem mãe. A professora era ruim para bater que
vasculho o forno das ideias à espera de uma resposta
as mãos até ficavam negras. Eu era a coisa que mais gostava de fazer era andar na charrua atrás das vacas. Ai, filha do coração, Deus
que cresça como um pão. Não sei, porém, se me
te dê sorte com elas. A verdade é que já não me resta muito tempo. Tenho sido malsão nas opções que fiz. Ninguém me manda ir
alimento mais da espera ou das respostas amassadas
comprar peixe sem estudar o mar, entregar-me nas mãos de quem apregoa na lota, ser mais filho que pai, apertar o sinto apenas
pelas mãos obedientes a um pensamento que duvida.
à medida do umbigo. Ninguém me manda lampejar talentos que não tenho, talentos que são dom do nome ou, como li algures, do
Disponho as palavras tendidas na página em branco e
berço e do lei nho enfarpelado durante a pequenez. Logo eu, que me contento com tão pouco. Vivo bem com o calor zoom zip das
quedo a olhar para elas como, quando era criança,
escapadelas, umas cervejinhas frescas à hora do descanso, lápis e papel, o que houver na mesa. Não sou nada exigente com os
quedava a olhar a massa crescendo lentamente até
vinhos, nunca tanto quanto sou com os beijos. Garanto também que até ter perdido as duas vistas num duelo zarolho, nunca dei
ficar pronta para cozer.
conta de quanto podia valer um espelho reflector. Como sabeis, é pela retaguarda que um po nunca descansa. É por trás que as
caladas atacam. É por trás que, desprevenidamente, mais as balas nos a ngem e atravessam o cachaço. Depois nada a fazer. Talvez,
como vou apregoando aos mosquitos que ainda me escutam, dar connosco a mirar trancas enquanto desenrolamos as tranças da
memória. Uma coisa é certa: não me entrego com facilidade aos chicotes. Se me quiserem o sangue, que afiem os dentes.
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